É verdade que o açúcar vicia? Essa é uma das perguntas mais comuns quando o assunto é alimentação e saúde mental. Muitas pessoas relatam sentir uma vontade incontrolável de comer doces e descrevem essa sensação como um verdadeiro vício. Mas, na verdade, o açúcar não causa dependência química. O que acontece é uma combinação de fatores comportamentais, emocionais e ambientais que podem gerar um consumo excessivo e descontrolado, mas isso não caracteriza um vício real.
Adotar uma alimentação equilibrada, cuidar da saúde emocional e trabalhar a relação com a comida são passos fundamentais para quem sente que está comendo doces em excesso. Lembre-se: comer açúcar com moderação pode (e deve) fazer parte de uma alimentação saudável.
É verdade que o açúcar vicia?
Para entendermos se é verdade que o açúcar vicia, primeiro é importante frisar o que caracteriza um vício. No campo da neurociência, o vício é definido como uma perda de controle sobre o consumo de uma substância ou a prática de um comportamento, mesmo diante de consequências negativas. Além disso, o vício envolve alterações significativas no funcionamento e na anatomia do cérebro, com destaque para o sistema de recompensa e a liberação de dopamina.
No caso de drogas como cocaína ou nicotina, por exemplo, o uso crônico provoca um aumento na tolerância, exigindo doses cada vez maiores para obter o mesmo efeito. Outro sinal típico do vício é a síndrome de abstinência, com sintomas físicos e emocionais intensos quando a substância é retirada.
Alimentos doces, como chocolates e sobremesas, também aumentam a liberação de dopamina, o neurotransmissor responsável pela sensação de prazer e recompensa. No entanto, o mecanismo é diferente daquele observado com drogas.
Enquanto substâncias, como a cocaína, bloqueiam a recaptação de dopamina, prolongando e intensificando o efeito de prazer, o açúcar apenas estimula a liberação de dopamina de forma mais leve e passageira, embora o açúcar traga prazer, a intensidade da resposta cerebral não é suficiente para causar uma dependência química real.
Além disso, para um alimento ser considerado viciante, seria esperado que o consumo aumentasse progressivamente ao longo do tempo, com o desenvolvimento de tolerância. Porém, estudos mostram que isso raramente acontece com o açúcar.
Adaptação do paladar ao sabor doce
Uma das principais razões pelas quais algumas pessoas sentem vontade de consumir mais alimentos açucarados é a adaptação do paladar ao sabor doce. E isso não vale apenas para o açúcar de mesa: também acontece com adoçantes naturais e artificiais. Quanto maior o consumo de alimentos com sabor muito doce, maior a tolerância ao dulçor. Com o tempo, o paladar vai se acostumando e a pessoa passa a perceber menos o sabor adocicado em preparações com menor teor de açúcar.
A boa notícia é que essa adaptação é totalmente reversível. Reduzindo o consumo de alimentos doces por algumas semanas (em média, duas semanas já são suficientes), o paladar volta a se sensibilizar, permitindo que quantidades bem menores de açúcar ou adoçante sejam suficientes.
Diferente da tolerância observada em vícios químicos, essa mudança no paladar não envolve alterações permanentes nos receptores de dopamina, nem provoca sintomas físicos de abstinência. Trata-se apenas de uma resposta fisiológica natural à exposição frequente a sabores mais intensos.
A adaptação do paladar ao sabor doce costuma ser maior quando o açúcar está associado a outros ingredientes que também aumentam o apelo sensorial do alimento, como a gordura e o sal, bastante presentes em alimentos processados e ultraprocessados, como doces de confeitaria, biscoitos, chocolates, bombons, entre outros. A gordura confere cremosidade, maciez e crocância (dependendo do tipo de produto). O sódio (sal) realça o sabor e intensifica a percepção do doce. Na natureza, raramente encontramos alimentos com essa combinação simultânea de alto teor de açúcar, gordura e sal. Isso faz com que alimentos processados e ultraprocessados tenham um perfil sensorial que estimula o consumo excessivo.
É importante também diferenciar o contexto de consumo. Um exemplo simples: adicionar uma pitada de mel, melado de cana ou até açúcar de mesa em um molho caseiro para salada pode, na prática, melhorar a aceitação da refeição como um todo. Isso aumenta a adesão a uma alimentação saudável, baseada em verduras, legumes e outros alimentos in natura. Por outro lado, consumir um pacote de biscoitos doces ultraprocessados todos os dias tende a piorar a qualidade da alimentação, reduzir a saciedade e contribuir para uma ingestão excessiva de açúcar, gordura e sódio. Essa comparação ajuda a entender que o problema não é o açúcar isoladamente, mas o contexto alimentar como um todo.
A verdade é que nem o açúcar, nem o molho para salada, nem o biscoito precisam ser demonizados. Quando criamos uma relação de medo ou culpa com os alimentos, isso pode acabar gerando comportamentos compensatórios, como episódios de exagero ou até um ciclo de restrição e compulsão.
Construir uma boa relação com a comida envolve entender que todos os alimentos podem ter espaço na rotina, desde que com equilíbrio, consciência e atenção ao prazer em comer.
Portanto, não é verdade que o açúcar vicia, já que a adaptação do paladar não configura um vício verdadeiro. Além disso, é importante destacar que, se o açúcar realmente causasse um vício comparável ao das drogas, haveria uma incidência muito maior de obesidade associada a esse fator isolado, o que não é observado.
Na maioria dos casos, o desejo por doces está mais relacionado a questões comportamentais, culturais, emocionais ou até ambientais do que a um verdadeiro processo de dependência química.
Fatores emocionais e o comer compulsivo
Outra questão importante é a diferença entre vício e comer compulsivo. Muitas pessoas que relatam ser “viciadas em açúcar” na verdade apresentam episódios de exagero ou compulsão alimentar. Essa condição está frequentemente ligada a fatores emocionais, como ansiedade, estresse ou insatisfação corporal.
O ciclo de restrição e exagero também é comum: a pessoa passa longos períodos evitando doces de forma rígida e, quando se permite, acaba comendo em excesso, reforçando a sensação de falta de controle.
Ao contrário do vício em substâncias químicas, o exagero e a compulsão alimentar não envolvem sintomas físicos de abstinência quando o alimento é retirado. O que pode ocorrer são pensamentos recorrentes sobre o alimento, o que reforça o padrão emocional de busca por conforto na comida.
Fatores genéticos, culturais e ambientais
Além da adaptação do paladar, é importante lembrar que o comportamento alimentar é influenciado por uma combinação de fatores genéticos, culturais, emocionais e ambientais.
Do ponto de vista biológico, algumas pessoas têm uma tendência natural a buscar mais estímulos de prazer, seja por características de personalidade (como maior impulsividade) ou por diferenças individuais na forma como o cérebro responde a recompensas. Isso pode fazer com que alimentos doces sejam mais atrativos para algumas pessoas do que para outras.
Mas a cultura e os hábitos de infância também desempenham um papel muito importante. Famílias que têm o costume de oferecer sobremesas em todas as refeições ou usar doces como recompensa por bom comportamento acabam reforçando, desde cedo, a associação emocional entre o consumo de açúcar e sentimentos de prazer, conforto ou recompensa.
Além disso, vale destacar a recomendação das principais diretrizes de saúde infantil. Tanto o Guia Alimentar para Crianças Brasileiras Menores de 2 Anos, publicado pelo Ministério da Saúde, quanto os documentos da Sociedade Brasileira de Pediatria, orientam que não se ofereça açúcar nem adoçantes (naturais ou artificiais) para crianças menores de 2 anos. Essa orientação tem como objetivo justamente evitar o desenvolvimento precoce de uma preferência exagerada por alimentos doces e favorecer a aceitação de frutas, legumes e outros alimentos naturalmente menos adocicados.
Ou seja, o costume e a exposição repetida a sabores doces desde a infância podem aumentar a preferência por esse tipo de alimento ao longo da vida. Mas isso não significa que o açúcar seja uma substância quimicamente viciante, como as drogas. Trata-se de um comportamento aprendido e influenciado por múltiplos fatores.
Como lidar com a vontade de comer doces?
Se você sente que tem dificuldade em controlar a vontade por doces, algumas estratégias podem ajudar:
- Evite restrições extremas: Proibir completamente o açúcar pode aumentar ainda mais o desejo e o risco de episódios de exagero.
- Inclua pequenas porções no dia a dia: Criar um ritual prazeroso e consciente para o consumo de doces pode ajudar a manter o equilíbrio. Faça um chá ou café, sente-se calmamente sem distrações (como TV ou celular), sinta o aroma e o sabor do alimento, mastigue lentamente. Aproveite o momento sozinho ou em boa companhia.
- Aposte na reeducação do paladar e da alimentação: Reduzir gradualmente o açúcar da alimentação permite que o paladar se adapte, diminuindo a necessidade por grandes quantidades. Procure um nutricionista de sua confiança para te auxiliar nesse processo.
- Cuide da saúde emocional: Muitas vezes, a vontade por doces está ligada ao estresse, ansiedade ou insatisfação. Trabalhar essas questões com o auxílio de um psicólogo, pode ajudar no controle alimentar.
Livia Freitas (CRN/SP 3 82983) e Fernanda Furmankiewicz (CRN/SP 6042) – Nutrição e Curadoria da Boomi.